Antifilosofia Originária: Descolonizar o pensamento para transformar o mundo.

Glailson dos Santos
10 min readAug 5, 2020

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“⁠Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem — fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo que eu consigo pensar é natureza.”

- Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, pág. 9–10.

“Senso Comum” e “Filosofia” são duas armadilhas do colonizador. Afinal, “Senso Comum” não é mais do que um termo para esconder o fato de que o pensamento dominante em qualquer sociedade de classes é o pensamento da classe dominante, que busca nos convencer que os interesses do colonizador são também nossos interesses. Já a “Filosofia” é um truque ainda mais sofisticado, destinado a manter cativo quem chega a questionar o senso comum.

Na filosofia somos aprisionados em abstrações e invencionices sem qualquer compromisso com nossa vida real. Enquanto isso, o pensar originário é indissociável da prática e da natureza, assim como, o conhecer originário é indissociável daquilo que somos capazes de sentir, com a pele e com o coração. Por isso, o que devemos buscar não é uma “Filosofia Indígena”, mas uma Anti-filosofia Originária.

A filosofia e seu vínculo ancestral com o colonialismo.

Sócrates, Platão e Aristóteles formam a triarquia da filosofia entendida como tal, cujo berço é a Grécia Antiga e a pretensão autodeclarada é substituição dos “mitos primitivos” pela “razão universal”. Toda filosofia, em suas diferentes tradições e escolas, não passa de uma paleta de incontáveis tons de platonismo. Mas a quem servem essa tradição?
A Sócrates, herdeiro da escola pitagórica, devemos a separação entre homem e natureza, em oposição aos ditos “filósofos da natureza” ou “pré-socráticos”. A Platão, discípulo mais proeminente de Sócrates, devemos o dualismo entre matéria e espírito, sempre com o predomínio do segundo em relação a primeira. Já a Aristóteles, discípulo de Platão, devemos a noção de que o conhecimento empírico pode (e deve) ser compatível com as duas declarações anteriores.
Esta tradição filosófica — não por acaso composta por membros de uma elite decadente, escravagista e misógina — , pode ser descrita nos termos do Materialismo Dialético como: Idealista, por colocar abstrações acima da realidade material; e Determinista, por se fundamentar nas três premissas expostas como verdadeiros dogmas. Sendo tão enganosa quanto útil aos interesses de manutenção da sociedade de classes, onde ela se originou.
Não fosse assim, não teria sido institucionalizada como filosofia oficial, pelo menos desde que Aristóteles foi eleito tutor do lendário Alexandre da Macedônia, o “Grande” Colonizador. Tão pouco teriam sido, Platão e o próprio Aristóteles, capazes de oferecer respaldo filosófico ao emergente cristianismo, que ascenderia à posição de doutrina religiosa hegemônica, como religião oficial de um moribundo Império Romano, sendo traduzidos para o jargão cristão por ideólogos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, respectivamente.
Este vínculo e esta essência reacionária do cânone filosófico “ocidente” é tudo o que Marx denunciava ao afirmar: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”.
Embora Marx, tenha se dedicado ao profundo estudo da filosofia, chegado a produzir uma tese de doutorado sobre filósofos que ele considerava Pós-Aristotélicos, ironicamente chamados de Pré-Socráticos pelo cânone filosófico, ele sempre buscou refutar as premissas idealistas e deterministas que fornecem a fundamentação ideológica que até hoje justifica a existência e a prevalência da sociedades e classes. Opondo-se a essa tradição socrático-platônica , Marx propôs sua superação, não através da metafísica ou do empirismo ingênuo, mas pela ação consciente e revolucionária.
Deixar para trás os grilhões que nos aprisionam em diferentes sociedades coloniais que, desde o surgimento dos impérios da antiguidade, colocam os ganhos individuais acima dos interesses coletivos das pessoas, é também se libertar dos grilhões ideológicos que normalizam e mantêm os privilégios de uma aristocracia governante. Como gostava de aconselhar o próprio Marx: De omnibus dubitandum! — Há que se questionar tudo!

Antifilosofia, o pensar e o sentir originários.

Não é por acaso que no tupi antigo, reflexo de sociedades anteriores à ordem segregacionista das sociedades coloniais, pensar, fingir e perder tempo são sinônimos, expressos pela palavra mo’ang. Enquanto, conhecer, saber, discernir, sentir e perceber também são sinônimos, expressos no termo kuab. O pensar do colonizador é mo’ang, perda de tempo, pois separa o sentir do conhecer, a razão da emoção, o eu do outro, a teoria da prática, o espírito da matéria. É tentar impor nossos desejos e conveniências à realidade. Já o sentir indígena é kuab, é o conhecer que se abre para o mundo, percebendo o outro e a natureza pelo que são, não pelo que gostaríamos que fossem.

Em um certo sentido, nós, indígenas, somos muito mais racionais e pragmáticos do que os “cidadãos ocidentais médios”, o que não se confunde com a perspectiva romântica e idealista do “bom selvagem”, proposta por Rousseau, nem com as noções pejorativas e mesquinhas que estes termos evocam em seu uso vulgar. O fato é que a divisão platônica entre razão e sensibilidade não passa de mais uma falácia do colonizador. Não se pode conhecer aquilo que não se é capaz de sentir.

A visão dos indígenas como criaturas inerentemente diferentes dos “brancos civilizados”, que se diferenciariam destes por serem magicamemte ligados ao sobrenatural não passa de mais uma forma de segregação e racismo.

A visão de mundo originária, por necessidade e sobrevivência, é, de muitas formas, mais realista e pragmática do que a dos brancos, ditos civilizados. Daí o sábio alerta indígena sobre o fato de que não se come dinheiro e nossas duras crítica às infindáveis invencionices do colonizador sobre seu Deus-Mercado, que faze dar de ombros à destruição desenfreada da natureza e às interações genuinamente humanas, em nome de abstrações como lucro, sucesso e modernidade.

Quando falamos em “espíritos”, estamos falando em algo muito diferente do que a noção que essa palavra evoca nas mentes colonizadas pelo paradigma platônico-abraâmico-ocidental que hegemoniza o mundo contemporâneo. Aparentemente, para a maioria das tradições indígenas que chegaram até nós, espíritos não são entidades abstratas, descoladas da realidade concreta, mas, sim, a essências dos elementos palpáveis que compõem o universo, em nós mesmos e a nossa volta.

Falamos dos espíritos das coisas que são parte cotidiana de nossas vivências, como as plantas e animais com os quais convivemos; os rios, montanhas e florestas, que compõem a paisagem na qual estamos imersos; e de nossos ancestrais, que nos legaram os ensinamentos recolhidos ao longo das gerações que os antecederam e que forjaram os vínculos que nos mantêm unidos como um povo, uma comunidade, não apenas pela consanguinidade, mas, principalmente, por laços culturais de afinidade, linguagem, práticas e conhecimentos que se fazem presentes em nosso cotidiano.

Nenhum desses espíritos aos quais nos referimos é “perfeito” ou inerentemente “bonzinho”, no sentido moralista e hipócrita da cultura imposta pelo colonizador. Essas entidades são muitas vezes indiferentes, algumas vezes contraditórias e sempre multifacetadas, como, aliás, é também a própria realidade que nos cerca.

Ao falarmos em “espíritos”, não é como se falássemos de entidades abstratas, de fora da nossa realidade, perfeitas e puramente malignas ou bondosas, como Deus ou o Diabo, o Céu ou o Inferno, o Corpo ou o Espírito, da cosmologia cristã, nem do dualismo entre o real e o ideal da filosofia platônica, de onde historicamente bebeu o cristianismo.

Nossos ancestrais já conheciam a diferença entre fatos e ficções. A sobrevivência sem os privilégios da elite colonial e com o contato direto com a natureza exige pragmatismo e disposição para mudar de opinião diante de novos fatos. A visão de que os povos originários são superticiosos por essência e dispostos a acreditar em qualquer alegação absurda não passa de racismo e caricatura. Ignora o fato de que sociedades coloniais, mesmo aquelas tidas como mais avançadas, costumam estar imersas em superstição e crenças absurdas.

Em nossas narrativas tradicionais, a opção por privilegiar a oralidade, não tem apenas a ver com o fato de que a maioria dos povos de Abya Yala, aparentemente, não conheceram a linguagem escrita antes da invasão europeia. Mesmo na Europa, foi necessária a invenção da prensa hidráulica e as revoluções contra as monarquias absolutas para que o letramento se generalizasse nos séculos mais recentes. A escrita, até muito recentemente, foi um privilégio da elite. Nós não tínhamos elites.

É tão absurdo supor que nossos ancestrais sempre tiveram interpretações literais sobre suas próprias narrativas e desconheciam a noção de metáforas e simbolismos, quanto seria supor que todo o cristão crê na literalidade de suas histórias sobre cobras e jumentas falantes, anjos, demônios, dragões e heróis com superpoderes como Sansão.

Na maior parte da história de nossa espécie, narrativas orais, cheias de simbolismos e metáforas, foram a forma predominante de transmissão de conhecimentos relevantes entre as gerações. E os textos escritos não se tornam verdades absolutas apenas por estarem aprisionados no papel ou na memória de um computador. Estes são os fatos, o resto é mera ficção.

É neste sentido de questionar o senso comum e mesmo as ficções coloniais mais arraigadas nos ambientes acadêmicos que falamos em uma Antifilosofia Originária, em oposição às bases ontológicas da filosofia que encontra seu fundamento no pensamento platônico, ou seja, em oposição ao pensamento idealista e dogmático. Aparentemente, não é próprio das culturas indígenas o dualismo filosófico, que fomenta a arrogância e a hipocrisia dos ditos “civilizados”.

As cosmovisões indígenas tendem a ser muito mais humildes e práticas, estão sempre dispostas a reconhecer a realidade como ela se apresenta: indiferente, cruel e implacável, mas, também, generosa, diversa e fascinante. Os espíritos nestas concepções originárias estão inerentemente vinculados à natureza, tangível, concreta, material.

De tal maneira que o pensamento tradicional indígena, longe de ser incompatível com o Materialismo Dialético, parece partir, intuitivamente, de suas mesmas bases fundamentais, qual seja: o reconhecimento do caráter objetivo e dialético da realidade/natureza, como única forma efetiva de compreendê-la e modificá-la, reconhecendo a humanidade como parte inerente desse todo que é a natureza.

Assim, para muitas tradições indígenas, tudo que existe é natureza. Só a natureza existe. Viva, palpável, interconectada e em movimento permanente; mas essencialmente real, concreta, material. Inclusive nós, humanidade, e o tudo o que fazemos — aquilo que o colonizador chama de produto ou mercadoria — também é natureza, natureza transformada pelo trabalho humano, mas, ainda assim, natureza.

O pensamento indígena não está descolado da prática e tão pouco se confunde com o dualismo platônico. Somos originariamente monistas do ponto de vista filosófico. Separar o espírito da matéria/natureza foi um truque do colonizador para justificar o desprezo e a destruição da natureza, do outro, do real, do presente em nome de abstrações como o paraíso, o desenvolvimento, o pós-vida e o futuro.

Nossos ancestrais, que já estavam aqui milhares de anos antes da colonização europeia, já exerciam a prática de observar a natureza, se questionar sobre os limites de nosso conhecimento sobre ela, de testar os limites desse conhecimento para aprofundar nossa compreensão sobre a realidade concreta. Assim como reconheciam a importância de reiniciar esse ciclo, sempre observando e aprofundando o conhecimento sobre a natureza a nossa volta. Isto, que é o cerne do fazer científico, sempre esteve aqui, não desembarcou das caravelas.

A dicotomia entre indígenas espiritualizados (no sentido desta espiritualidade descolada da realidade material) e de uma ciência branca (colonial) deve ser rechaçada, pois é fruto de uma perspectiva racista e colonial que reserva todo misticismo aos povos não-brancos, supostamente primitivos, ao mesmo tempo em que destina toda a ciência ao colonizador, supostamente civilizado.

As conquistas da humanidade são também conquistas dos povos indígenas, pois os indígenas também fazem parte deste coletivo que é a humanidade e contribuíram com o avanço de seu conhecimento coletivo, embora esta contribuição seja quase sempre invisibilizada. Porém, as fantasias do colonizador — o dualismo platônico; o monoteísmo; o individualismo; o patriarcardo; a segregação da humanidade em castas, raças ou classes sociais — sim, são invencionices próprias das sociedades coloniais, inclusive as capitalistas.

A espiritualidade que nos foi legada por nossa ancestralidade originária é a consciência de que tudo o que existe é natureza e está intrinsecamente interligado com o todo que é o universo. Sejamos nós humanidade com tudo aquilo que nos cerca, seja cada um de nós com este todo que chamamos humanidade e que nada mais é do que parte da Natureza. Estamos todos ligados, através do tempo e do espaço, e nosso destino, qualquer que seja ele, será compartilhado por todos nós. E nada disso está relacionado com religião ou metafísica.

Faz sentido falar em religiões ou religiosidades indígenas?

Obviamente, o pertencimento originário não é uma confissão religiosa, nem implica em nenhuma filiação religiosa, afinal, há indígenas católicos, evangélicos, umbandistas, budistas, etc. Ninguém deixa de ser indígena por se vincular, ou não, a qualquer religião. O que de fato nos une é uma cosmovisão originária, um estar no mundo que se inspira em uma ancestralidade anterior à colonização européia e às sociedades segregacionistas, baseadas em classes ou castas sociais.

O estar no mundo que nos une, enquanto indígenas, é anterior e ainda mais profundo que qualquer identidade religiosa. E o próprio conceito de religião não passa de mais uma imposição do colonizador. Afinal, “religião” vem do latim “religare”, que significa, “voltar a se ligar”, “reconectar-se com o sagrado”. Mas quem separa para conquistar, conquista para saquear e engana para encobrir seu saque, é o colonizador, não nós.

Não precisa buscar reconexão quem nunca se desconectou. Foi o colonizador quem separou o sagrado do mundano, a natureza da humanidade, o passado do futuro, o outro do eu, os que mandam dos que obedecem. Para nossos ancestrais não existiam nem faziam sentido essas separações. Também por isso o colonizador precisou impor com violência suas religiões e sua epistemologia, quando aqui chegou. Não é por acaso que o primeiro ato de dominação colonial sobre corpos racializados durante a invasão européia foi o batismo cristão, que desconectava simbolicamente e, muitas vezes na prática, nossos ancestrais de seu pertencimento originários. Como se diz Deus, deuses ou religião na língua de seus ancestrais?

Em munduruku não existe o fonema “F” e, talvez por isso, eu não sinta falta de nenhuma fé para afirmar minha ancestralidade. Sou indígena e não tenho religião. Não preciso de fé nem de filosofia para viver o vínculo que nos une, enquanto povo, à natureza e à ancentralidade. Para isso me serve apenas a consciência, sem a necessidade de paraísos, de mundos invisíveis, de invencionices metafísicas ou de promessas para o pós-túmulo. Nosso sagrado vive em cada um nós, em cada animal, planta, rio ou pedra, aqui e agora. Pois somos natureza e ancestralidade! E tudo que temos é o presente. Saibamos desfrutá-lo com sabedoria. Sawé!

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