Kwanzaa, o natal dos pretos.

Glailson dos Santos
3 min readDec 20, 2020

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Como já dizia Marx, o Mouro: “Nada que é humano me é estranho". Embora há muito tempo eu tenha escolhido abrir mão de qualquer noção abstrata de divindade e pautar minha “espiritualidade" pela realidade concreta e pelas necessidades iminentemente humanas, entendo que nós, humanos, somos criaturas essencialmente simbólicas e ritualísticas, nos relacionamos com o mundo através dos símbolos e dos rituais que criamos, fruto de nossa necessidade de atribuir sentido, alguma constância e previsibilidade, a uma existência inconstante e imprevisível, que por si só não possui nenhum sentido além daquele que atribuímos a ela.

Por tudo isso, para mim, datas comemorativas e eventos cíclicos sempre foram fontes de nostalgia, ternura e satisfação, oportunidades para reunir pessoas queridas e refletir sobre nós mesmos e o mundo a nossa volta. E entre tais ocasiões, com a honrosa exceção do Círio, nenhuma outra é para mim tão importante quanto as celebrações de fim de ano.

A semana entre o Natal e o Réveillon, em especial, é uma ocasião para unir as pessoas que amo e buscar reunir forças para enfrentar mais um ano de batalhas e conquistas neste “mundo pelo avesso" que nos coube viver e transformar. Celebrar também é resistir. E todo guerreiro ou guerreira, por mais aguerrido que seja, também necessita de algum descanso entre as batalhas.

Ainda que muitos cristãos insistam em reivindicar o monopólio sobre o Natal, esta sempre foi uma celebração muito anterior a existência do próprio cristianismo e sem um vínculo necessário com o nascimento do Cristo. Historiadores e arqueólogos, aliás, afirmam que o mais provável é que o Cristo histórico tenha nascido por volta de junho, não em dezembro. Tudo indica que a celebração cristã do Natal foi resultado do sincretismo do antigo cristianismo com os cultos a Mitra e Saturno, cujos nascimentos eram celebrados no solstício de inverno, na época em que o Imperador Constantino declarou o cristianismo a religião de Estado do decadente Império Romano.

Em sua origem, o Natal é uma tradição herdada pelos povos ditos "pagãos" da Europa que, no hemisfério norte, celebravam solstício de inverno e clamavam pela misericórdia de seus deuses para sobreviverem à estação mais fria e perigosa do ano, quando o perigo de morrer de frio ou de fome se fazia real para aqueles que não haviam conseguido acumular recursos suficientes para sobreviver a mais um inverno.

Porém aqui, no hemisfério sul, embora tenhamos o nosso "inverno amazônico", dezembro não trás o solstício e nem a ameaça do frio congelante que esteriliza os campos. Aqui a neve é substituída pelas fortes chuvas, o frio pelo calor dos trópicos, os agasalhos pelas chinelas e camisetas e o velho Noel se vê deslocado do cenário com suas renas e roupas pesadas. É realmente curioso e emblemático que a apropriação destas antigas tradições pelo capital, para alimentar sua sanha consumista, tenha sido transposta para nós através de símbolos tão alheios a nossa própria realidade.

A busca por simbolismos mais apropriados, que nos libertem da imposição colonizadora e eurocentrada do Natal, me levou a descobrir o Kwanzaa, uma tentativa do movimento negro norte-americano de resgatar antigos símbolos e tradições africanas e relaciona-las as celebrações de fim de ano, surgida no contexto da luta pelos direitos civis nos EUA e do movimento Pan Africano mundial.

O Kwanzaa é comemorado na semana entre o Natal e o Réveillon, onde cada dia é dedicado à reflexão sobre um dos sete princípios em torno dos quais reunimos as pessoas que amamos, honramos nossa ancestralidade, recordamos a diáspora africana e reafirmamos nosso compromisso com a luta por nossa emancipação, são eles: umoja (união), kujichagulia (autodeterminação), ujima (responsabilidade), ujamaa (solidariedade), nia (propósito), kuumba (criatividade), imani (confiança).

Em um ano tão duro e difícil, a descoberta do Kwanzaa surge, para mim, não de qualquer expectativa mística ou sobrenatural, mas da consciência dos laços que nos unem a toda a humanidade através do tempo e do espaço, laços históricos, de luta e ancestralidade. E esta consciência não poderia ser mais reconfortante e animadora. Muita força, coragem e determinação para todos nós. Que no novo ano que se aproxima os desafios que se estendem adiante sirvam para tornar ainda maiores nossas conquistas vindouras. Feliz Natal! Feliz Kwanzaa! E um próspero ano novo! Axé! Saravá!

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