100 Anos da Semana de 22

Reflexões sobre arte, cultura e luta anticolonial em um Brasil tomado pelo neofascismo.

Glailson dos Santos
15 min readFeb 23, 2022
Reantropofagia. Denilson Baniwa, 2019.

Sob variadas perspectivas 2022 já entrou para a história do Brasil como um ano emblemático, não apenas por ecoar eventos marcantes do passado, como o bicentenário da Independência e o centenário da Semana de Artes Modernas, mas, também, pelos temores e anseios sobre nosso futuro, cercado por expectativas em relação às eleições de outubro, em um contexto no qual o mundo vislumbra a ameaça de conflitos em escala global que poderão vir a culminar com a deflagração de uma nova guerra mundial.

Em um cenário tão sombrio e incerto, parar, mesmo que por um instante, para refletir sobre arte, cultura e história pode parecer supérfluo ou despropositado. Contudo, tais reflexões têm muito a nos revelar sobre os aspectos menos óbvios dos desafios que temos pela frente, em especial, sobre um aspecto particular, quase sempre subestimado na luta política, mas que pode ajudar explicar muitas das derrotas que a esquerda e os revolucionários têm sofrido nos anos mais recentes, o da luta ideológica.

A Semana de Arte Moderna de 1922, realizada entre 13 e 17 de fevereiro, ocorreu em um momento igualmente decisivo, de grandes mudanças econômicas, sociais e culturais em escala global, e só pode ser devidamente entendida no contexto de um país construído sobre séculos de um violento processo colonial de etnocídio dos povos nativos e exploração da mão de obra escravizada, tanto indígena quanto afrodiaspórica.

Um pouco mais de contexto.

Operários. Tarsila do Amaral, 1933.

Em 1922, a Primeira Guerra Mundial havia encerrado há pouco mais de três anos e a poeira levantada pela vitória da revolução russa de 1917, ano em que o Brasil coincidentemente havia vivenciado sua primeira greve geral, ainda não havia baixado. E as peças no tabuleiro já se posicionavam para eclosão da Segunda Grande Guerra. Na Itália, o movimento fascista, fundado em março de 1919, ganhava força. Na Alemanha, derrotada e mergulhada em uma crise econômica sem precedentes, Rosa de Luxemburgo e Karl Liebknecht haviam sido brutalmente assassinados há apenas dois anos e o jovem Bertolt Brecht escrevia suas primeiras peças incendiárias. Enquanto isso, os EUA vivia seus “anos loucos”, inebriados por um clima de otimismo impulsionado pelo crescimento econômico do período entre guerras e pelo florescimento de novas mídias como o rádio e o cinema, um otimismo que só seria interrompido, de maneira brusca, pela devastadora crise de 1929. Tal cenário, de efervescência e contradições, se refletiu, no campo das artes, em movimentos de questionamento e ruptura com o passado, como o dadaísmo, o cubismo, o futurismo e o surrealismo.

No Brasil, que havia surgido da maneira como o entendemos hoje há apenas um século, com a declaração de uma independência ironicamente proclamada pelo herdeiro de uma dinastia colonial estrangeira, a Velha República via sua sua ordem política, de revezamento entre as oligarquias agrárias paulista e mineira, ser cada vez mais colocada em cheque. Tanto por outras oligarquias regionais, acuadas pela diminuição da relevância de commodities, como borracha e a cana-de-açúcar, e pela hegemonia crescente do café paulista na pauta de exportações brasileiras. Quanto pela nova classe média urbana, que crescia, tanto como consequência do acelerado processo de urbanização e industrialização, quanto pela chegada em massa de imigrantes europeus destinados a “embranquecer” o país.

Toda essa tensão que logo se refletiria, entre outras coisas: na fundação do Partido Comunista Brasileiro, em março de 1922; no surgimento do Tenentismo, a partir da revolta do Forte de Copacabana em junho de 1922; na formação da Coluna Prestes, em 1924; e, finalmente, no golpe militar de 1930, que encerraria a Velha República dando origem a famigerada “Era Vargas”.

Aliás, o próprio regime que viria a ser instaurado pela “Revolução” de 30, com o apoio de setores da elite sulista e nordestina e da crescente classe média urbana, carregava em si suas próprias contradições, e embora fosse inspirado pelo fascismo europeu e refletisse a necessidade das elites locais de combaterem a propagação comunista, a ditadura militar de Vargas iniciava com uma dupla tarefa: encerrar a hegemonia política da velha oligarquia paulista reacionária e garantir que as transformações pelas quais a nova burguesia urbana e industrial ansiavam se dessem sem o protagonismo da classe trabalhadora.

Assim, naquele nem tão distante ano de 1922, urgia a necessidade de cimentar uma identidade nacional para um país que apenas engatinhava na busca por alguma soberania e por conquistar seu lugar ao sol em meio ao conturbado cenário internacional.

Mesmo para a velha elite econômica agrária, que sempre havia prosperado sob o julgo colonial, a construção de uma identidade nacional surgia como uma oportunidade de fortalecer, por laços simbólicos e ideológicos, a unidade de um vasto território que, até então, só vinham sendo capazes de manter unido por meio da força e do medo (vide os reiterados episódios de repressão às revoltas e tentativas de sublevação popular ao longo da história das colônias lusitanas na América do Sul e no período regencial). Não nos esqueçamos que historicamente coube à burguesia a invenção dos modernos Estados-Nação e de fronteiras nacionais que permitissem o livre fluxo de capitais e mercadorias, um projeto que incluía, sim, a necessidade de afirmação de uma mitologia de formação nacional.

Enquanto, para a jovem intelectualidade brasileira, sedenta por mudanças, muito mais do que simplesmente reproduzir as tendências que floresciam na Europa, a afirmação de uma identidade nacional partia do afã por uma real independência, capaz de romper com os séculos de exploração colonial e domínio político, econômico e cultural impostos por potências estrangeiras. Este foi o cerne da proposta modernista, expressa no Manifesto Pau-Brasil, cujo marco histórico se convencionou fixar naquela fatídica semana de 1922.

Sobre anacronismo, apropriação e polarização política.

A Estudante. Anita Mafaltti, 1915.

Por mais bem intencionada que pudesse ser aquela vanguarda artística brasileira, ela também estava submetida às complexidades e contradições legadas pelo violento processo de formação do Brasil, assim como pelo conturbado cenário mundial naquele início do século XX. Não poderia ser diferente. Afinal, como já alertava Marx em seu 18 Brumário: “Os homens (aqui entendidos como pessoas em geral, independente de gênero) fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

Compreender a reflexão proposta por Marx, nos ajuda a entender muitas das incongruências que atravessaram, não apenas a Semana de Arte Moderna, mas o modernismo brasileiro de maneira geral. Afinal, se por um lado é importante evidenciar e problematizar as várias limitações desse movimento, por outro, é fundamental interpretá-lo em seu devido recorte histórico e geográfico para, de fato, compreendê-lo.

Não há como negar, a Semana de Arte Moderna foi um evento realizado por uma elite intelectual branca e hegemonicamente masculina, com estreitos vínculos com a oligarquia cafeeira paulista. Uma intelectualidade mais preocupada em se apropriar de elementos da cultura indígena e afrodiaspórica do que realmente assegurar protagonismo aos genuínos representantes de tais culturas. Um processo que, embora possa ter se iniciado como um fascínio fetichista do colonizador pelo colonizado, evolui de formas antagônicas, não apenas como apropriação simbólica, mas, também, como legitima disposição em reconhecer a luta de resistência desses povos e se somar a ela.

Reflexo dessas contradições intrínsecas e extrínsecas, é o fato de que a vanguarda artística modernista acabou dando origem, tanto ao Movimento Antropogágico, que se associou aos ideais comunistas de contestação do status quo, inclusão e luta contra as elites políticas e econômicas; quanto ao Movimento Verde-Amarelo que, inspirado pelo fascismo e pelo conservadorismo, viria a desembocar no Integralismo, o original fascismo à brasileira.

Tal polarização, tão pouco se limitou ao modernismo no Brasil, mas se fez presente em movimentos artísticos contemporâneos por todo o mundo. Como exemplo, podemos citar a dicotomia representada pelo poeta francês André Breton e o pintor espanhol Salvador Dalí, ambos artistas vinculados ao Surrealismo. Enquanto Breton caminhou em direção ao comunismo, Dalí escolheu apoiar o regime fascista de Franco em seu país natal. É interessante notar, ainda, que tanto no caso da vanguarda surrealista, quanto no modernismo, as respectivas alas à esquerda não só se identificaram com o comunismo, como foram capazes de elaborar suas próprias críticas ao regime soviético de então, se aproximando do movimento trotskysta internacional.

De qualquer forma, a apropriação modernista da cultura indígena encontrou sua expressão mais abjeta no Manifesto Nhengaçu Verde-Amarelo (1929), marco fundador do Verde-Amarelismo, onde se lê: “O Tapuia isolou-se na selva, para viver; e foi morto pelos arcabuzes e pelas flechas inimigas. O tupi socializou-se sem temor da morte; e ficou eternizado no sangue da nossa raça. O tapuia é morto, o tupi é vivo”. Tal perspectiva idealizava dois arquétipos opostos: o dos indígenas que teriam sido assimilados de forma voluntária pelo colonizador para dar origem a uma identidade brasileira (tupi); e o dos indígenas que escolheram se manter “selvagens” e, supostamente, teriam deixado de existir ou de ter o direito de existir (tapuia). Assim, observamos no verde-amarelismo uma assimilação sob um viés de exclusão, que saqueia e aniquila as identidades indígenas, tentado conciliar a exaltação de um passado indígena idealizado, com o desprezo pelo indígena real, que segue existindo e resistindo.

Em contraponto, o Movimento Antropofágico, embora não esteja isento de seus próprios equívocos, se refere aos indígenas em termos diametralmente opostos em seu manifesto fundador de 1928, sem a pretensão de apagamento e exclusão, mas conclamando as diferentes identidades brasileiras a se unirem no reconhecimento e na exaltação de uma cultura indígena viva, ativa e capaz de transformar o mundo, não apenas ser transformada por ele: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (…) Contra todos os importadores de consciência enlatada. (…) Contra a verdade dos povos missionários”. Ou seja, propõem a unidade na luta contra o colonialismo. E ressalta: “Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz”. Ou seja, fazendo referência à figura indígena idealizada pela literatura colonial, repudia a submissão forçada da identidade indígena aos valores impostos pela sociedade branca, cristã e ocidental.

Para além desse embate entre as diferentes tendências modernistas é importante reconhecermos também como as tensões intrínsecas e extrínsecas ecoaram no campo individual, mesmo na ala modernista mais à esquerda:

Oswald de Andrade, por exemplo, apesar de sua origem na aristocracia paulista tradicional e de ter vindo a romper relações com Mário de Andrade devido sua arraigada homofobia, foi, também, a figura em torno da qual se reuniu boa parte da vanguarda modernista mais consequente com a proposta de questionamento do status quo vigente, militando nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro em um período decisivo para sua consolidação, e pagando um alto preço por sua ousadia, sendo relegado à marginalidade no final de sua vida.

Tarsila do Amaral, que não esteve presente na semana propriamente dita, embora tenha tido sua trajetória intimamente vinculada ao modernismo, era herdeira de latifundiários paulistas que haviam prosperado a partir da exploração dos escravizados, mas foi, também, uma militante comunista, que usou sua arte para inspirar gerações de mulheres e denunciar as mazelas do capitalismo, chegando a ser presa por seu vínculo com os comunistas durante a Ditadura Vargas e morreu como uma artista de classe média, embora reconhecida por sua arte.

Mesmo Mário de Andrade, que nunca chegou a se vincular formalmente ao comunismo, embora também estivesse alinhado à esquerda e fosse preto, gay e de origens humildes, preferiu a discrição para transitar entre a elite intelectual branca e homofóbica e em seu Macunaíma (1928) se apropriou de mito indígenas, sagrado para diversos povos, reproduzindo o racismo e a misoginia característicos da velha elite, reforçando preconceitos, ainda que se debruçasse em críticas pertinentes às oligarquias políticas.

Todas essas contradições, longe de apenas evidenciarem os pecados de indivíduos que dedicaram parte importante de suas vidas às lutas da classe trabalhadora, refletem limitações muito mais abrangentes, que para serem superadas, precisam ser reconhecidas, embora também compreendidas em seu contexto, sem que isso signifique a absoluta negação de seus méritos.

Também é verdade que a Semana de 22 foi patrocinada por uma elite “progressista” de São Paulo, no contexto de uma busca por se autoafirmar como culturalmente independente e superior em relação ao Rio de Janeiro, então capital do país, de onde costumava irradiar as tendências culturais e artísticas diretamente importadas da Europa. Porém, é falso que a Semana ou o modernismo tenham sido exclusivamente paulista, como fazem crer as referências ao evento na historiografia e na mídia hegemônica.

A relevante presença do escritor e diplomata maranhense Graça Aranha, um principais organizadores do evento, e do poeta pernambucano Manuel Bandeira, que embora não estivesse presente, em razão de problemas de saúde, foi representado com destaque pela declamação de seu poema, Os Sapos (1918), na noite de abertura, deveria ser suficiente para questionar a versão corrente de um modernismo puramente sudestino.

É ainda mais notável a repercussão que o “espírito” modernista já vinha tendo em diversos outros pontos do país, um fenômeno que apenas seria impulsionado e visibilizado pela própria Semana de 22 e pela atuação posterior do influente coletivo de artistas que se formou a partir dela. Por mais que o cânone historiográfico e literário estabelecido a partir da década de 60 insista em se concentrar suas atenções na cena paulista.

Mesmo no Rio de Janeiro, e ainda antes de 1922, uma vanguarda de artistas pretos, como Lima Barreto e Pixinguinha, já antecipavam, de maneira até mais incisiva, muitos dos questionamentos e tendências que seriam abraçadas pelos modernistas sem, contudo, receberem os créditos devidos pela historiografia oficial. Aliás, o fato dos Oito Batutas, grupo musical do qual Pixinguinha fazia parte, ter excursionado pela Europa naquele mesmo fatídico ano, evidencia ainda mais a ausência de uma musicalidade genuinamente popular na programação da Semana de 22.

Por fim, outro aspecto relevante foi o protagonismo das mulheres em todo o movimento modernista. Muito se fala sobre o fato de que as mulheres representavam pouco mais de 10% dos organizadores da Semana de 22 e da ausência no evento da icônica Tarsila do Amaral. No entanto, pouco se diz sobre a completa ausência de mulheres em momentos-chave do desenvolvimento artístico anterior, sobre o fato de que as mulheres brasileiras só conquistariam o direito ao voto 10 anos depois, e ainda precisariam lutar por mais de meio século para assegurar seu direito ao divórcio. Apesar desse cenário bastante desfavorável, as mulheres tiveram papel de destaque no Modernismo. Entre as quais podemos citar Anita Malfatti, que não só esteve presente no evento, como foi uma de suas principais lideranças. Ela era portadora de uma deficiência física congênita no braço direito e se tornou um dos grandes nomes da pintura modernista com uma exposição que antecipou em cinco anos a Semana de Arte Moderna, enfrentando as críticas truculentas de uma elite intelectual conservadora encabeçada por Monteiro Lobato, o que gerou uma comoção na cena artística paulista decisiva para reunir o coletivo que organizaria o evento em 1922.

Internacionalismo e luta anticolonial: um olhar sobre o Modernismo Parawara.

A Vendedora de Tacacá. Antonieta Santos Feio, 1937.

Entre o nacionalismo ufanista e excludente dos modernistas verde-amarelos e a celebração de uma brasilidade crítica, anticolonial e inclusiva, almejada pelos modernistas antropofágicos, pode ser prudente recuar dois passos para, diante de uma perspectiva panorâmica do modernismo, colocada em seu devido contexto, podermos, enfim, questionar: Ainda faz sentido qualquer busca por uma identidade “brasileira”?

Tal questão se torna ainda mais relevante no Brasil distópico da atualidade, onde um setor reacionário, de inspiração fascista, ascendeu ao poder se autointitulado “patriota” e se apropriando dos símbolos nacionais para levar a cabo uma política entreguista, misógina, racista, homofóbica, xenófoba e assassina. Escancarando o caráter enganoso e reacionário da retórica nacionalista.

Diante do fato, já negritado, de que a moderna noção de Estado-Nação não passa de uma criação da burguesia e de que a palavra de ordem dos revolucionários, pelo menos desde o Manifesto do Partido Comunista, é o internacionalismo, — Trabalhadores de todos os países, uni-vos! — a exaltação da identidade nacional, levada a cabo pelos modernistas, joga contra ou a favor da transformação social que almejamos?

É possível que as respostas possam ser encontradas no modernismo real, não em sua versão canonizada. Em especial nos modernismos que floresceram na periferia política e econômica daquele Brasil do anos 20 do século passado, onde o caráter anticolonial deste movimento político-cultural encontrou sua máxima expressão.

Tomemos como exemplo o modernismo Parawara, surgido em Belém do Grão Pará, no contexto do encerramento do primeiro ciclo da borracha e de uma forte identidade regional, alimentada por séculos de relativo isolamento e contato direto com as metrópoles coloniais na Europa.

Ainda em 1918, em torno da revista “A Semana”, surgia em Belém uma geração de jovens artistas, conhecidos como os “novos”, que trilhava, por seus próprios meios, a busca por uma identidade nacional. Como os modernistas paulistas, os “novos” lutavam contra os preconceitos estéticos, os formalismos acadêmicos e o conservadorismo. Contudo, cientes do caráter conservador do discurso nacionalista, que busca impor uma união nacional subordinada aos interesses burgueses da elite sudestina, desde o início, eles buscaram confrontar os valores, os heróis e as glórias do suposto passado mítico do Brasil, sendo taxados pelas oligarquias locais como antipatriotas, derrotistas e “desertores da causa brasileira”.

Esta nova geração de intelectuais paraenses, de início, também se dividiu em duas alas. Uma delas, de origem mais abastada, se reunia nos cafés, à moda francesa, e era conhecido como “Academia ao Ar Livre”. Enquanto a outra reunia-se em meio aos bares do Ver-o-Peso e ficou conhecido como “Academia do Peixe-Frito”, devido à origem mais modesta de seus membros, quase todos considerados mestiços vindos do interior ou das periferias de Belém. Porém, logo as duas alas se uniriam com a criação da Associação dos Novos, ainda em 1921, sob a direção de Bruno de Menezes, que apelidou o novo grupo unificado de “Vândalos do Apocalipse”, buscando ressaltar sua disposição em destruir as velhas convenções e formalismos para criar uma perspectiva genuinamente nova, a partir do diálogo entre a intelectualidade e a classe trabalhadora amazônica, alvo do silenciamento e do apagamento histórico.

O próprio Bruno de Menezes, que mais tarde seria apontado pelo premiado escritor marajoara Dalcídio Jurandir, como “o babalorixá da literatura paraense” , é uma perfeita síntese do que havia de mais avançado nos ideais modernistas. Filho de sangue preto e indígena, nascido no periférico bairro do Jurunas e ideologicamente filiado ao anarquismo, foi operário do setor gráfico e autodidata, líder da Academia do Peixe Frito e dos Vândalos do Apocalipse, chegou a galgar a posição de presidente da Academia Paraense de Letras, promovendo o diálogo entre os salões da intelectualidade e as vielas da periferia de Belém, dedicando-se a registrar e exaltar, em verso e prosa, a riqueza e as peculiaridades do povo paraense, sobretudo de suas camadas mais pauperizadas.

Entre 1923 e 1929 os modernistas paraenses publicaram a revista Belém Nova, através da qual mantinham diálogo com suas contrapartes em outras regiões do país. Ao ponto de publicarem seus próprios manifestos em resposta ao Manifesto Pau-Brasil (1924), dentre os quais destacou-se o Manifesto Flaminaçu (1927), de Abguar Bastos, que antecipava alguns dos elementos que viriam a ganhar visibilidade no famoso Manifesto Antropofágico, que seria publicado penas em 1928. Eles também chegaram a ter alguns de seus textos publicados na famosa Revista de Antropofagia, dentre os quais podemos destacar “A Descida Antropophaga”, do jornalista paraense Oswaldo Costa, que, embora tenha sido publicado ao lado do icônico Manifesto de Oswald de Andrade, no primeiríssimo número da revista paulista, e fosse ainda mais incisivo que este, tornou-se muito menos lembrado.

As necessidades práticas da luta anticolonial contra a exploração e as arbitrariedades impostas tanto pela burguesia internacional, quanto por seus agentes locais, combinada à consciência histórica de uma nova intelectualidade de origem proletária que se orgulhava de suas raízes, construiu no seio do movimento modernista a compreensão de que o reconhecimento e a valorização da diversidade presente no interior da classe trabalhadora é o pressuposto, não um obstáculo, para sua necessária unidade em defesa de seus interesses de classe. Afinal, não o que nos divide não é o fato de sermos diversos, mas a opressão colonial, machista, racista, lgbtfóbica, capacitista, xenófoba e nacionalista.

Sobre essa questão, Marx e Engels, em A Ideologia Alemã, no Manifesto do Partido Comunista e no Volume 1 de O Capital, esclarecem: “A sociedade comunista, a única sociedade em que o genuíno e livre desenvolvimento dos indivíduos deixa de ser uma mera frase (…) Em vez da velha sociedade burguesa, com as suas classes e antagonismos de classe, haveremos de ter uma associação, na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos (…) uma forma mais avançada de sociedade, uma sociedade em que o pleno e livre desenvolvimento de todos os indivíduos é o princípio diretor”.

Retomando as questões levantadas…. De nada nos serve o nacionalismo burguês, abstrato e reacionário. Entretanto, a luta revolucionária é indissociável da luta anticolonial que reside no cerne da proposta modernista. Simplesmente não faz sentido contrapor o internacionalismo à luta anticolonial.

Assim, se compreendermos que o objetivo final da luta revolucionária consequente não é apenas a derrota da classe burguesa por um proletariado abstrato, idealizado e homogeneizado, mas o fim da própria lógica na qual se fundamentam as sociedades de classes, ou seja, não só o fim do Estado — enquanto mecanismo mantenedor de desigualdades — e da exploração do trabalho humano por qualquer elite parasitária, mas de toda e qualquer forma de opressão — o que inclui, mas não se limita, à opressão colonial contra a qual se insurgiram os modernistas mais consequentes— estaremos prontos para reconhecer a importância e as contribuições deste movimento, que ecoa através do tempo, no Tropicalismo, no Movimento Manguebeat e em tantos outros, até os nossos dias.

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